Cleo Araújo: A vida quis dar-lhe lições, mas ela acabou dando lições de vida

Cleo Felix Araújo


Seu nome é Cleonice Felix Araújo. Tem 44 anos. É natural do Mato Grosso  e viveu boa parte da infância e juventude no Mato Grosso do Sul. Tem mais de 20 anos que mora em Caxias do Sul. Sua profissão de coração é artesã. Hoje, é bacharel em Direito e trabalha no gabinete do deputado Pepe Vargas (PT-RS), encarregada da pasta LGBT.


Mas estará enganado quem se entusiasmar com o glamour dessa abertura. A vida foi dura com Cleo. Bateu forte. Sabe-se, porém, que o ferro se forja no calor, se molda com o fogo. E é exatamente isso que o papo com ela nos mostra.

Autodefinição

Eu sou uma mulher trans, mas por luta e politicamente, pelo apagamento de uma identidade que me trouxe até aqui, eu sou uma mulher travesti.

Não tive nem tempo de parar pra fazer a “transição". Com 11 anos de idade fui expulsa de casa. Um casal vizinho me “acolheu” e depois me levou pra um prostíbulo, perto de Cuiabá, no garimpo. Fiquei lá até os 15 anos, literalmente presa, sem poder sair de dentro de casa. Só então consegui fugir. Eu era uma criança, não sabia nada sobre meu corpo ou gênero.

Vivia peladinha, com os cabelos desgrenhados, no máximo com um calção, subindo em árvores e brincando com bonecas de palha de milho. Eu me comportava como uma menina e meu pai não aceitou isso, passando a me agredir com violência. Lembro dele dizendo que na família dele não tinha veado. E eu nem sabia o que que era ser veado.


Infância violada

Com calma, olhos no horizonte, como se perscrutassem uma tela, Cleo vai (re)contando. "Essa foi a minha infância: brincando até os 10 anos debaixo de um pé de limão galego, chupando limão com sal. Depois disso, deixou de ser infância pra ser um verdadeiro pesadelo. No garimpo a gente atendia até 15 homens por noite, até o dia em que escapei.

Éramos em oito naquele lugar e eu fui a única que conseguiu fugir. No quarto tinha uma cadeira velha de palha, roída de cupins. Consegui quebrar, mas me machuquei, sangrando muito. Fingi que estava deitada e o segurança entrou, trazendo a comida. Bati com a madeira na cabeça dele e saí correndo. Como estava somente “couro e osso”, magérrima e desnutrida, consegui passar por uma basculante que tinha na sala. Aí, eu vi que do outro lado da rua passava água. Era um rio. Me joguei, mas eles conseguiram me pegar. Foi nessa primeira fuga que eles passaram um facão no meu pescoço. É por isso que eu uso sempre colares grandes, pesados, pra cobrir a cicatriz, conta Cleo, deslocando os olhos daquela tela-horizonte e buscando seu corpo.

Lembro deles dizendo “vamos desovar esse corpo”. Eu sabia que isso significava cortar e dar para os cachorros comerem. Saí correndo e me joguei no rio novamente. Como eu não sabia nadar, me arrastei pelo barranco me enroscando no limo. Foi horrível. Ainda hoje, tenho pesadelos.


Novo horizonte

Fui parar numa BR. Um carro parou. Eu estava toda ensanguentada e molhada, mas consegui pedir ajuda. Esse anjo salvador, cuja fisionomia eu não consigo lembrar, me levou pro hospital. Dali, acabei numa Delegacia, onde contei o que acontecera. A polícia, que já estava investigando o prostíbulo, deu uma batida e libertou todas as meninas. Como eu era menor de idade, intimaram meu pai. Considero esse o fim da minha infância. Fui morar em Campo Grande, com uma ex-cunhada, que se transformou na minha melhor amiga. Nessa etapa, conheci a igreja católica.

Primeiro, tive que me entender como pessoa trans, e a Igreja foi o suporte de tudo aquilo que eu não tive em casa. Aos 17 anos cheguei a pensar em entrar para um seminário, circulando por algumas congregações, mas entendi que não era esse meu lugar. Comecei, então, a trabalhar no meu primeiro emprego, com carteira registrada.

Construindo Igualdade

Depois disso, fui morar em Santa Catarina.  Em Santa Catarina profissionalizei-me na área estética, trabalhando com implante de cabelos. Foi lá que conheci meu esposo. Estamos juntos há mais de 20 anos e em breve vamos nos casar.

De Santa Catarina, meu marido e eu decidimos vir para Caxias do Sul. Onde me envolvi com a ONG Construindo Igualdade, uma entidade sem fins lucrativos, que iniciou atividades em 2003, a partir da necessidade de organização da comunidade LGBTQIA+. Atualmente, ela é dirigida coletivamente por uma comissão de pessoas LGBTs.

A ONG, segundo nos explicou Cleo, é uma espécie de guarda-chuva e abriga vários projetos. Dentre eles, parece importante destacar a primeira Casa de Acolhimento para pessoas LGBTs da Região Sul do Brasil, inaugurada em maio de 2021. Em 2024, mais de 100 pessoas já passaram pela Casa, se computarmos pernoite e assistência psicológica. Considerando-se o total de projetos desenvolvidos no espaço, somam-se mais de 400 atendimentos no mesmo período.

Atualmente, a Casa tem capacidade para acolher quatro moradores temporários simultaneamente. Manter o projeto representa enfrentar dificuldades. O custo mensal de manutenção da casa fica na média de R$ 4,5 mil, incluindo despesas com alimentação, água, luz e internet...

Um segundo projeto da ONG é o Emprega LGBT. Com ele, busca-se oportunizar condições de empregabilidade para a comunidade LGBTQIA+ de Caxias do Sul. O projeto conta com serviços como: a) Banco de Currículos – a ONG oferece confecção de currículos para pessoas LGBTs e trabalha na distribuição para o setor de RH de empresas parceiras; b) Cursos Profissionalizantes – em parceria com a FSG e professores voluntários. Já foram oferecidos cursos de inglês, artesanato, culinária e arte. No momento, estão sendo ofertados cursos de inglês, massa para pizzas e drinks. c) Prepara ENEM – curso preparatório ministrado por professores voluntários, visando ao ingresso de pessoas LGBTs no Ensino Superior.

O terceiro projeto da ONG é o Núcleo de enfrentamento à LGBTfobia e à violência contra a mulher. Ele prevê ações de combate à discriminação contra a comunidade LGBTQIA+ de Caxias do Sul e região, além do acolhimento a mulheres vítimas de violência doméstica (sejam LGBTs ou não). O projeto viabilizou-se por recurso de emenda parlamentar do deputado federal Elvino Bohn Gass (PT/RS). Por meio dele são oferecidos: a) Acolhimento e assistência psicológica a mulheres vítimas de violência (em 2023, foram cerca de 25 atendimentos); b) Assessoria jurídica para retificação de registro civil de pessoas transexuais, travestis e não-binárias (somente em 2023, contemplou mais de 40 pessoas); c) Atendimento feito pelo advogado Daniel Baldasso. 


Espaço social da Casa de Acolhimento, que deverá ser remodelado para abrigar atividades de teatro



Desponta uma vitória

A ONG integrou-se, também, desde 2016, à luta pela criação de um Serviço Ambulatorial Especializado no Processo Transexualizador (Ambulatório Trans), em Caxias do Sul, inaugurado no dia 04 de abril último. A iniciativa está associada à Secretaria Municipal da Saúde (SMS), com objetivo principal de fornecer um ambiente seguro e assistido por profissionais capacitados para o procedimento. O espaço fica localizado no primeiro andar do Centro Especializado de Saúde (CES) e viabilizou-se com emenda parlamentar da Deputada Fernanda Melchiona (Psol). Para arrecadar fundos, a ONG conta, hoje, com a emenda parlamentar obtida junto ao Deputado Elvino Bhon Gass; com a renda de almoços, e atividades similares que desenvolve, como bingo; com a doação de padrinhos (hoje são apenas cinco) e com alguma doação espontânea como uma parceria com o Banco de Alimentos. 

A batalha da vida foi dura, difícil, mas hoje tenho uma profissão, formei-me em direito, trabalho como assessora parlamentar o Deputado Estadual Pepe Vargas, tenho um casamento muito bom com meu companheiro, dedico-me à bandeira da causa LGBT e me sinto feliz, realizada. A construção disso tudo, porém não foi fácil.

 



Renascendo

Mesmo os capítulos mais duros foram superados, conta Cleo, que nesse momento engole a emoção e volta para a tela-horizonte. Minha mãe morreu jovem e a relação com meu pai teve momentos muito difíceis, mas hoje isso é passado. A gente precisa praticar o que chamo de cura interior. 

Se você não pratica essa cura interior, não adianta você dizer que “virou a página e perdoou”. Não, você não terá perdoado e nem virado a página. Você continua sendo a mesma pessoa, amargurada. Então, pra mim foi importante praticar essa cura. Foi com a cura interior que me reaproximei de meu pai.

Aos poucos, fui desenhando meu caminho. O primeiro projeto em que trabalhei era ligado ao HIV, com entrega de preservativo pelo governo do estado. Outro passo importante foi o ingresso no Conselho Municipal de Saúde, como voluntária. Depois disso, consegui uma vaga dentro do Conselho de Saúde, desenvolvendo o projeto viabilizado pela emenda do deputado Bohn Gass. Em seguida, começamos a pensar nossas ações como um lugar de formação, de educação, de profissionalização e não apenas como um banco de emprego como as pessoas viam a ONG. Nesse período começaram a nascer os cursos: inglês, artesanato, drinks, culinária... 

No período da pandemia do Covid 19, tivemos muita dificuldade para receber assistência. Foi então que pensamos num projeto chamado Pão para Todos, que buscava despertar solidariedade. Não era apenas fazer um pão, mas distribui-lo ao vizinho, a quem precisasse daquele pão. Expandimos, o projeto para toda a comunidade. 


Surge a Política

Na etapa seguinte de meu caminho, empenhei-me numa campanha para a eleição municipal (2020). Não fui eleita, mas a semente ficou e hoje sou pré-candidata pelo PT à câmara municipal de Caxias do Sul. O convívio com Pepe Vargas, com Denise Pessôa, com Fernanda Melchiona, com Elvino Bohn Gass fortaleceu minha vontade de empunhar com força a bandeira LGBT, fazendo dela verdadeira causa.

A Casa de Acolhimento transformou-se em capítulo à parte e começamos a contar com ajuda de muita gente. Tudo o que temos é fruto de doação, desde o aluguel. Hoje, a Casa é nosso projeto principal, porque ela “fala” da vida de todas as pessoas LGBT.

Algumas pessoas LGBT não têm problema com a mãe, com o pai, com a família, mas há aqueles que não têm onde morar, como eu já não tive, tendo que dormir na rua. Por isso, mais do que melhorar a infraestrutura da Casa, pensamos que seja importante diversificar os cursos, e para isso precisamos de doações bem como do aumento do quadro de padrinhos, que fazem doações permanentes, mesmo que sejam pequenas.


Na pequena horta e no apertado alpendre há lugar para novos sonhos, que, com certeza, representarão 
a fuga de muitos para um mundo melhor, mais justo e mais humano


Sonhos que viram realidade

Outra iniciativa muito importante é poder desencadear um trabalho com as famílias da população LGBT. Está em nossa lista, também, ampliar a biblioteca; ampliar a cozinha, oferecendo mais refeições e readequar o espaço social, para podermos trabalhar com teatro. Evidentemente, precisamos de doações para isso. Nossas conquistas são lentas, mas sólidas. Uma das meninas que passou por esta casa, hoje é professora de inglês. Outra, mora na Itália e acaba de entrar para uma universidade. São conquistas gratificantes demais. E muitas pessoas sabem disso.

Cleo comemora: Dividimos essa alegria, por exemplo, com duas educadoras sociais, com uma assistente social e com um advogado, um time de quatro profissionais e, é claro, com mais de uma dúzia de voluntários que nos doam um pouquinho de seu tempo e saber.

Para incorporar-se à ONG como voluntário(a), basta entrar em contato com a equipe. Trabalho, certamente não falta, na medida em que estão no horizonte projetos para uma casa de acolhimento a mulheres vítimas de violência em Farroupilha; uma casa de acolhimento à população LGBT em nível nacional e uma casa de acolhimento à população LGBT de idosos(as). 

Que ninguém duvide desse grupo, pois pioneirismo é com ele mesmo. A Casa de Acolhimento LGBT de Caxias do Sul, por exemplo, é a pioneira no acolhimento da população LGBT, independentemente de gênero. E como o que tempera a vida é a alegria, não se pode deixar de contar que esse grupo criou um bloco carnavalesco: o Arco-Íris, que no período da folia contagia a cidade com suas cores e alegria.

A vida foi dura, sim, mas aquela garotinha que, aos 10 anos de idade chupava limões no pé, aprendeu a fazer deles uma refrescante limonada.

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